BEM-VINDO À CIDADE

Ceci
10 min readJun 4, 2024

--

Arte: Jacques Kleynhans

BEM-VINDO À CIDADE

entrar em um bar não-vazio deixa qualquer um exposto por alguns instantes ao escrutínio público. sentado, bebendo um negocinho, o cliente está suscetível a observar o corpo, roupa, movimento e conduta do recém-chegado. esse pobre coitado, transformado involuntariamente em uma atração que é oferecida de quando em quando pelo estabelecimento sem custo adicional, tem poucas possibilidades de ação:

1- continuar vivendo até cair no esquecimento alheio;

2- gritar algum impropério abanando os braços ameaçadoramente em direção a todos que o encaram;

3- fingir que vai tirar uma pistola de dentro da calça causando pânico momentâneo.

graças a deus não foi isso que aconteceu com donizete, porque ele não entrou em um bar, e sim em uma pastelaria, e ela estava vazia. o que era um pouco estranho, já que duas horas da tarde é um horário interessante para almoçar tardiamente dois pastéis e uma coca. se eu fosse donizete, interpretaria a falta de quórum como um mal sinal. todas as pessoas que não estavam ali na certa sabiam de algo que ele não sabia sobre o estabelecimento, como uma prévia interdição pela vigilância sanitária por exemplo. A atitude mais prudente nesses casos é simular que esqueceu algo no carro, virar e ir embora. não foi isso que ele fez, pois não estava, na realidade, em busca de um pastel (ou dois ou até mesmo de uma coca). mas o funcionário que o acolheu risonho não tinha como saber disso.

— fala, meu patrão.

— bom dia, tudo bem? eu estou na verdade querendo uma informação.

donizete estava ainda no meio da frase quando percebeu a brusca mudança de semblante de seu interlocutor, de solícito para hostil. depois de terminar de falar, esperou um pouco em silêncio, aguardando talvez um “claro, no que eu puder ajudar…” que não veio, pois o funcionário, assim que percebeu não tratar-se de uma transação comercial e sim solidária, entrou em modo de economia de energia. donizete retomou o assunto, arrependido de ter feito a pausa.

— a lâmpada do meu projetor super 8 queimou e um rapaz lá da minha cidade disse que eu ia encontrar aqui. falou para eu chegar em qualquer lugar e perguntar por uma loja de antiguidades… que a cidade era pequena e as pessoas iam me ajudar.

o funcionário, cujo nome era impossível de adivinhar porque não usava nenhum tipo de crachá (mas um bom palpite seria eugênio), não se mostrou muito entusiasmado com a idílica imagem de cidadão-super-prestativo-de-cidade-pequena que nunca caducava. sentiu-se tentado a responder “ontem mesmo mataram uma senhora na rua de trás”, mas não quis soar mórbido (apesar de ser verdade).

— lâmpada do quê?

— de projetor de filme.

eugênio permaneceu em silêncio por certo tempo. donizete, apreensivo, pegou o celular para procurar uma imagem genérica de projetor (não que achasse que a foto ou o desenho fosse ajudar em alguma coisa, mas era melhor do que fazer uma mímica de projetor ou tentar descrevê-lo, as três únicas possibilidades de ação que passaram pela sua mente. por algum motivo que foge à minha compreensão, não fazer nada sequer foi cogitado).

— como você chama?

— donizete

o olhar de eugênio ficou aceso de repente.

— bom, senhor donizete, loja de antiguidades tem algumas por aqui, vou te dar o endereço de uma, aí se não tiver, eles te direcionam para outra e assim você vai até encontrar, tá certo?

donizete achou o plano contraproducente, mas fazer o quê. eugênio pegou um papelzinho escrito “queijo”, o virou e começou a desenhar no verso as ruas e os pontos de referência, em absoluto silêncio. quando acabou, foi voltando no desenho, aprimorando as linhas, hachurando alguns cantos, sem pressa. depois de um tempo que não foi curto, se viu por satisfeito e começou a explicação:

— então vamos lá: você vai seguir essa rua até o fim, ela vai dar em uma rotatória, aí vai pegar a terceira saída e ir em frente toda a vida. no terceiro, não, quarto sinal, você vai virar a esquerda, depois na próxima a direita, aí quando entrar na rua vai andando devagar, olhando para o lado direito que uma hora vai ver uma loja de antiguidades. é ali.

donizete ouviu toda a explicação tentando disfarçar sua perplexidade: o mapa em nada coincidia com as orientações. não existia rotatória alguma desenhada, as ruas não passavam de minhocas contínuas sem a quebra de quadras e cruzamentos e o mapa ia apenas até o primeiro terço da explicação, depois disso eugênio passou a dar as indicações apontando para pontos imaginários além-papel. com o celular em riste, tentou contornar a situação:

— você sabe o nome da rua? porque aí eu coloco aqui no celular e dá lá certinho.

— não tem nome.

donizete achou que ele não tinha entendido a pergunta ou então que estava tendo um AVC.

— não, o nome da rua da loja de antiguidades.

— não tem nome.

— é de terra?

— não, asfaltada.

— curioso.

o homem o olhou desinteressado.

— e uma rua lá perto, você sabe? só para eu me localizar mais ou menos.

— nenhuma rua tem nome aqui.

— tem número?

— nada.

— por quê?

— a cidade não tem nome também.

o sujeito cada vez mais parecia que estava tendo um AVC, ou então que tentava fazer uma piada longa, elaborada e sem graça.

— por quê?

— quando dá nome, começa a chegar cobrança, imposto, iptu.

— é um assentamento ilegal?

— não é ilegal, ninguém veio aqui até hoje falar que é ilegal.

— eu sou o primeiro que está dizendo, então?

— pois é.

— então o status de ilegal está em suspenso, esperando alguém descobrir esse lugar e falar “é ilegal”?

— se ninguém contar ninguém descobre.

eugênio o encarava sem piscar. donizete estava amargamente arrependido de ter ido tão a fundo em assunto tão esquisito.

— você pode ter certeza que da minha boca não sai nada. se bobear eu até me mudo pra cá. imagina… não pagar imposto nenhum.

— você tem parente aqui?

— acho que não.

— só pode se mudar quem tem parente aqui.

— você tinha parente aqui?

— se não tivesse, não tava aqui, né?

— e os primeiros que se mudaram?

— o que que tem?

— eles não tinham parente aqui.

— tinham sim.

— mas a primeira pessoa que veio pra cá…

— tinha parente aqui.

— então tá bom.

donizete avaliou que não valia a pena insistir naquele argumento lógico com o rapaz. pediu um pastel de pizza como forma de agradecimento pelo “mapa” que, apesar de ser pouco funcional, tinha lá seus pontos altos (todas as árvores, nuvens e o sol estavam muito bem feitos). enquanto esperava, abriu o aplicativo de gps do celular e clicou no botão “seu local” na tentativa de descobrir o nome da cidade e da rua. só apareciam as coordenadas, as mesmas que seu colega havia enviado para ele quando indicou a cidade, a trinta minutos da cidade devidamente nomeada e taxada onde os dois moravam.

eugênio gritou “donizete” para avisar que o pastel estava pronto. 3 pessoas que tinham acabado de chegar e estavam no balcão o encararam com um olhar sanguíneo, muito parecido com o de eugênio quando descobriu seu nome. donizete comeu o pastel e saiu em busca da loja de antiguidades. repensou, deu meia volta e foi até o balcão.

— uma última dúvida: na entrada da cidade, no lugar onde geralmente está escrito “bem vindo a…”, está escrito o que aqui?

— bem-vindo.

donizete seguiu o mapa da melhor forma que pode e então foi guiando o carro devagarinho, olhando para os estabelecimentos dos dois lados, na esperança de topar com aquela, ou então com outra loja de antiguidades. não deu certo. parou algumas vezes para perguntar direções e eventualmente chegou em uma loja que tinha tudo para ser de antiguidades, já que se chamava “tiquinho antiguidades”.

quando estacionou o carro, uma moto passou lentamente ao seu lado. era um dos três clientes da pastelaria que estavam no balcão. donizete não achou a cena particularmente incomum, apenas julgou o rapaz por comer rápido demais. para estar naquela rua àquela hora, claramente ele não havia mastigado seu pastel direito. entrou na loja e perambulou por um tempo lá dentro até um senhor surgir detrás de uma prateleira entulhada de teclados amarelados (o conceito de “antiguidade” parecia ser bem solto dentro da tiquinho antiguidades).

— oi, posso ajudar?

— acho que pode sim, eu estou procurando por uma lâmpada para esse projetor — e sacou o celular para mostrar algumas fotos que tinha tirado do projetor.

— ah, sim. vou olhar lá atrás, mas você não trouxe ele?

— não, é muito pesado, mas tirei foto de vários ângulos, olha — e foi passando as fotos enquanto movia o celular em direção ao olhar do senhor, que também o movia, obstinado a olhar para qualquer direção que não fosse a da tela do aparelho de donizete.

— seria bom ter ele aqui pra gente testar e ver se funciona — disse ele, parado em frente a donizete, sugerindo que ele fosse embora buscar o projetor.

— eu não sou daqui, vou comprar sem testar mesmo.

o senhor desapareceu pelos fundos da loja. um rapaz que muito provavelmente se parecia com um jogador de futebol de algum lugar do mundo entrou na loja.

— alcino cadê?

— alcino?

— o dono da loja

— desculpa, eu nao sou daqui. achei que ele se chamava tiquinho.

— é o nome do cachorro dele.

— ah, sim. ele foi ali no fundo procurar uma lâmpada, já deve estar voltando.

os dois permaneceram em silêncio por um tempo. donizete pensou um pouco e disse :

— se essa loja fosse minha e eu colocasse o nome do meu cachorro seria “sem vergonha antiguidades”.

donizete riu timidamente de sua própria piada. já o rapaz, se riu, foi internamente, porque permaneceu com a expressão inalterada.

— porque ele pede comida até para os outros cachorros.

o sujeito continuou olhando fixamente para a direção do fundo da loja. acho que é seguro dizer que não estava rindo internamente.

— melhor deixar donizete mesmo.

ele virou-se para donizete com um súbito interesse.

— é donizete seu nome?

— isso.

— eu vou ver se o alcino tá lá atrás.

depois de um tempo voltam os dois para a frente da loja. alcino está com as mãos vazias.

— eu não tenho essa lâmpada, mas liguei para um amigo meu, de outra loja, e ele tá trazendo aqui, se você puder esperar…

— vai demorar?

— não, ele mora lá atrás do riozinho, você deve ter passado no caminho.

— ah, passei sim. imagino que não tem nome o rio também.

— antes de chegar aqui o pessoal chama ele de rio das garças. quando chega aqui a gente chama de rio turvo — disse alcino, que agora parecia muito interessado em donizete

— é que dá o nome… chegam as taxas, impostos, iptu, ipva — complementou o sósia de algum jogador de futebol, que agora também parecia muito interessado em donizete.

— mas ipva não é imposto municipal.

— aqui a gente não faz essa diferenciação entre impostos. imposto é imposto e a gente não paga — disse alcino. depois emendou a pergunta — você chama donizete mesmo?

— sim, toda vez que eu falo isso as pessoas daqui ficam me olhando estranho.

— é que um donizete sumiu da cidade depois de dar um golpe em um monte de gente aqui. tinha os braços gordinhos assim igual você.

— e o resto do corpo, era igual também?

— não, era meio diferente. mas os braços… parece que você fez plástica no corpo inteiro, só ficou faltando os braços.

donizete riu, desconcertado. por alguns segundos acreditou tratar-se de uma piada. uma piada grotesca que mudaria para sempre a percepção que tinha de seus braços, mas, ainda sim, uma inofensiva piada. sua opinião mudou quando o sósia de algum jogador de futebol deu um passo à frente e o interpelou:

— você se importaria de mostrar seu RG?

um terceiro homem entrou na loja. esse tinha um rosto singular, não se parecia com outra pessoa viva ou morta. donizete se sentiu cercado. pegou o RG e deu para o provável sósia, que leu e passou para alcino.

— é donizete mesmo!

e donizete não ouviu mais nada. acordou dentro de uma cova com um monte de gente a sua volta. reconheceu o funcionário da pastelaria entre eles.

— a lá, acordou — disse essa obviedade uma pessoa lá no fundo.

— nossa, esse donizete foi custoso. duas horas apagado. preciso fechar a loja ainda — resmungou uma outra.

alcino surgiu do meio da multidão e tomou a dianteira. pigarreou um pouco e se dirigiu a donizete (que tentou se levantar e percebeu estar com as mãos e pés amarrados).

— donizete, só pra explicar pra você o que vai acontecer aqui, para seu espírito não ficar vagando por aí em busca de respostas. aqui está a sua resposta, pegue ela e vá com deus: essa cidade tem nome sim, chama-se matadores de donizetes do sul — porque tem uma no norte. o pessoal que nos conhece atrai donizetes pra cá pra gente poder matar. não é nada pessoal, é só uma questão de você estar vivo e se chamar donizete.

— mas qual o problema com o meu nome?

— não é que é feio, a gente só não simpatiza. ficamos entre donizete e plínio e o seu nome acabou ganhando no plebiscito…

— mas por uma margem pequena — disse alguém.

— eu mesmo voltei em plínio — disse outra pessoa.

alcino levantou os dois braços pedindo silêncio. nem todo mundo entendeu o sinal e ele precisou gritar “silêncio” algumas vezes. quando todos se calaram, prosseguiu:

— gente, por tudo que é mais sagrado, não vamos entrar nessa discussão de novo. toda vez é essa pataquada. vocês precisam aprender a perder. se estão tão incomodados, que se mudem e fundem a matadores de plínios. o que não pode é chegar na frente de um donizete e ficar falando que ele quase perdeu para o plínio… que plínio não sei que lá… ah, porque plínio é mais feio e não sei o quê… tenha santa paciência — virando-se para donizete — desculpa, donizete, pessoal às vezes passa do ponto — e atirou.

gostou desse conto e acha de bom tom ressarcir a escritora pelo tempo despendido e pelos serviços prestados em prol da risadinha de cada dia? mande um pix para: paulagomesrtv@gmail.com no valor que você acredita que vale o conto. caso ache que o conto vale dois mil reais e não tenha dinheiro, pode fazer um pix de valor menor e escrever que acha que valia mais. lembrando que não é possível fazer pix de valores negativos.

--

--